terça-feira, março 17, 2009

MARCELO e os 5 minutos!



O Marcelo era um menino muito inteligente. Tinha o seu dia muito bem programado, desde o acordar ao deitar.. Quem reparasse no Marcelo, percebia que ele era um menino especial. Muito bem organizado e responsável, sabia o que queria e o que fazer para atingir os seus objectivos. Era perspicaz. Todos o admiravam, os professores e os seus colegas.


Todos os dias à noite o Marcelo escolhia a sua roupa para vestir no dia seguinte. Às vezes pedia ajuda à mãe, mas era raro. De manhã, o despertador tocava cedo, Marcelo acordava, espreguiçava-se… e virava-se para o outro lado mais 5 minutos!! Incrível! Quem soubesse disto, diria que o Marcelo era um preguiçoso de primeira! Mas não. Ele precisava destes 5 minutos, como precisava te todos os outros que vinham a seguir; dos 3 minutos para fazer o seu xixi e olhar o espelho, dos 10 minutos para se vestir, dos 8 para tomar o pequeno almoço, de 2 para lavar os dentes, de 1 para confirmar se tinha tudo na mochila e o último minuto era para dar um beijo e um abraço à sua mãe, antes de sair de casa… Mas antes destes minutos todos, Marcelo precisava daqueles 5 minutos! O Marcelo, sabia muito bem quanto tempo duravam estes 5 minutos, tal como sabia quando já se estavam a esgotar os restantes! Sabia quase ao segundo quando terminar uma tarefa e iniciar a outra. Num ápice, ao fim dos tais 5 minutos, Marcelo saltava da cama e continuava as suas tarefas, sempre atento ao tempo que fugia dele...


Os 5 minutos do Marcelo eram só dele, nem eram do tempo, nem do espaço, eram 5 minutos contados no relógio da vida. Era outro relógio que marcava estes 5 minutos, era um relógio sem ponteiros, nem de horas, nem de minutos. E nunca, nunca o Marcelo perdeu estes 5 minutos da vida!


Marcelo passava este 5 minutos com os olhos bem abertos, às vezes olhava pela janela, por onde fitava os raios de luz, ou perseguia uma gota de chuva a escorrer pelo vidro. Outras vezes, fixava os olhos no tecto, sempre bem abertos! Nestes 5 minutos ele planeava o seu dia, pensava muito bem em cada passo. O que tinha feito ontem, o que tinha que fazer hoje, como ia reagir a isto, como devia dizer aquilo... (Deduzo que o Marcelo só precisasse de 5 minutos porque ainda era uma criança, eu talvez precisasse de uma hora para planear outra hora...)


Era por causa destes 5 minutos que o Marcelo era um rapaz tão especial! Tão organizado! Impecável! Muito admirado pelos adultos! Que espectáculo de menino que era o Marcelo, nunca falhava pá! Irritava pela perfeição! Ele sabia que o admiravam, orgulhava-se disso, e por essa razão sempre se esforçou para manter este comportamento, era um compromisso com ele próprio! Não podia desiludir ninguém. Antecipava tudo, sabia a respostas todas na ponta da língua, andava sempre à frente dos outros, era aquilo a que eu chamo “chico esperto”. Eu não gostava muito do Marcelo, era irritante! Embora não fosse um miúdo muito convencido, a sua presença já me incomodava. Era o menino lindo, o menino prodígio, o menino perfeito, o exemplo a seguir, o menino de oiro… Bolas, Marcelo! Éramos todos crianças... e tu?


Um dia perguntei-lhe como é que ele conseguia ser assim, tão irritante!! E ele respondeu com um sorriso terno “...e só tenho 5 minutos, imagina se tivesse a vida inteira…” Na altura não percebi, só pensei que o gajo era parvo pela forma como respondia, era mesmo para eu não se perceber! Ou era eu que era mesmo burra? Não… era o gajo que era mesmo inteligente! Que raiva! De súbito pensei que o Marcelo estava doente e ia morrer em breve… só tinha 5 minutos, não tinha a vida inteira?!? hã?… Que disparate! Lembro-me de ter encolhido os ombros e não ter pensado mais nisso. Dali até à sala de aula o pensamento foi constante; "este puto é parvo, parvalhão… irritante! mas o que é que ele disse?!? ai que estúpido!! foi para me fazer de parva, claro! e depois aquele ar meigo... "nhãnhãnhã...", só mesmo ao estalo..." finalmente devo ter entrado na sala de aula porque não me recordo dos meus restantes desaforos.


O Marcelo era misterioso, e isso de alguma forma encantava-me e atraía-me para ele, portanto, não sei se gostava, se desgostava. Sei que não me era indiferente, isso não era!


Certo dia, o Marcelo chegou atrasado às aulas. Nunca tal tinha acontecido! A agitação e preocupação era geral, onde andava o Marcelo? Quando chegou, 5 minutos atrasado, entrou de cabeça baixa, pediu desculpa pelo atraso e sentou-se no seu lugar. Estava ofegante e muito rosado, suado... descomposto! Um silêncio sepulcral instalou-se na nossa sala de aula. Ficámos à espera da justificação… Nada! A professora também não pediu satisfações, mas olhou de soslaio para ele. A nossa curiosidade estava ao rubro mas ninguém falou! Ninguém falava muito com o Marcelo, tinhamos vergonha, porque ele era um ser superior a nós. Mas brincava connosco, não era excluido, nem pensar! Gostavamos da companhia dele, jogava bem à bola, tinha estratégia de jogo! Tinha ideias! Ele não era um lider, mas era aceite e respeitado por todos. Estava sempre ao pé de nós no recreio. Mas não neste recreio...


Neste recreio, ele afastou-se de todos, e foi para as escadas de pedra fria, onde se sentavam os rejeitados, aqueles putos que não brincam, que não falam, que não nada! Desinteressantes… Ali estava o Marcelo num lugar que não era o dele! Que imagem arrepiante… saí do meu jogo (aliás, da baliza!) e fui ter com ele...


- Que se passa Marcelo? Estás bem?
- Não se passa nada de especial, ‘tá tudo bem!
-Estás estranho! Chegaste atrasado, cabeça baixa, não falas, não dizes nada…
- Hoje perdi os meus 5 minutos! Mas não me apetece falar sobre isso – disse com um ar de culpa e de tristeza que nunca tinha visto naqueles olhos.
- E 5 minutos é assim tão importante? Credo, Marcelo…. Atrasaste-te 5 minutos, paciência! Adormeceste, foi?!
- Sim, adormeci...profundamente! Perdi os meus 5 minutos!


Porra, outra vez os 5 minutos??! Não há paciência… Que este gajo é mesmo irritante, caramba! 5 minutos, 5 minutos… Bem, tinha que ir para a baliza que estava completamente aberta... na minha baliza não entravam golos!! Ia levantar-me quando o Marcelo recomeçou o discurso;


- E ainda bem que perdi estes 5 minutos... percebi que ganhei os outros todos! - voltei a sentar-me ao seu lado, só por curiosidade - Sabes Ana, os meus 5 minutos eram para programar todos os restantes. E por isso eu era certo como um relógio, por isso eu tinha a resposta na ponta da língua, por isso eu não falhava… Hoje, adormeci durante os meus 5 minutos e não programei nada, de nada! E estou aqui, sem saber o que fazer hoje, o que pode acontecer, o que me podem perguntar, o que devo responder, quanto tempo já perdi, para onde vou… Estou desorientado, percebes?! Sinto-me sem chão, sinto que não controlo nada e que posso falhar e decepcionar as pessoas que me admiram. Eu não quero falhar, mas apercebo-me agora que quero viver… Repara, só estou há 3 horas sem ter a vida programada e já viste o que aconteceu?! Olha, não me despedi da minha mãe e só me lembrei disso no caminho; perdi o autocarro do costume e como o revisor não me conhecia tive que mostrar o passe que não encontrava em lado nenhum, nem na carteria, nem no bolso das calças... estava a ver que não o ia encontrar e comecei a transpirar de vergonha, toda a gente a olhar para mim! Depois lá encontrei o passe e fui sentar-me, olhei em frente e quem estava sentada mesmo nas minhas barbas?! A Catarina! A miúda do 6ºC, tu sabes... não tirou os olhos de mim e eu já me sentia a corar e com o coração ao saltos! Depois aproveitei que apareceu uma velhota e dei-lhe o meu lugar para sair daquele desconforto. Fiz uma boa acção! (sorriu com ironia) Finalmente, saí do autocarro, vim a correr, a correr para ver se conseguia chegar a hora, mas não! os ponteiros do relógio parece que corriam comigo! ...ai, que desespero! (esfregava a cabeça e despenteava o cabelo!) Ainda por cima, chego e sinto os vossos olhos a saltar para cima de mim e eu sem justificação! Comecei a rezar para a professora não me perguntar nada porque nem sequer tive tempo para pensar numa resposta inteligente… espera, estou sem fôlego! (até eu, estava sem fôlego só de o ouvir!) Como se não bastasse, reparei agora que não pus o meu lanche na mochila… Estou ansioso, irritado, angustiado... o meu coração bate, bate, bate...

- Bem... grande aventura Marcelo!! - disse eu com ironia!

Quantas vezes o meu lanche ficou em casa, quantos autocarros perdi, quantas vezes tive que gramar o parvalhão do Miguel no autocarro! E quantos milhões de vezes não me despedi da minha mãe antes de sair...


Mas quando olhava para os olhos do Marcelo, e para a forma como ele se despenteava todo, percebi que estava mesmo proecupado e assustado. Estava mesmo a viver aquele momento com muita intensidade... fiquei mais séria, verdadeiramente interessada e atenta ao que dizia.


- Pois... isto está a ser uma aventura! Posso dizer que já vivi mais emoções nestas 3 horas que no resto da minha vida! Percebes? E concluo, que afinal foi bom perder os meus 5 minutos! Embora não me sinta tão seguro, sinto-me... vivo! Mais autêntico! Fico sem saber o que faça. O que quero!? Viver uma vida segura, ou viver uma vida cheia de emoções, receios, surpresas, medos... respirar ofegante, correr, desesperar... Percebes, Ana?!


Eu percebi tudo. Mas fiquei sem palavras!


Neste recreio bebi as palavras gagas e ofegantes do Marcelo. Ai Marcelo, como me apeteceu abraçar-te neste momento! Que lição me deste para a vida por causa dos teus irritantes 5 minutos!


A partir deste recreio, o Marcelo tornou-se para mim um rapaz espectacular, embora para as pessoas em geral tenha perdido qualidades… Ouviamos dizer que era da minha má companhia…enfim, a Ana era sempre a má da fita! Riamos disso, porque só nós os dois sabiamos o que se passou. Crescemos os dois juntos no mesmo salto, naquele momento. Foi um salto para a vida...


Ninguém soube a história dos 5 minutos, o Marcelo achava a história dele tão ridícula que nunca me permitiu que eu a contasse… E eu percebia perfeitamente o Marcelo, por outro lado acho que as pessoas deviam perceber o que é vida, desta forma simples, por outro, éramos muito jovens, os nossos colegas não entenderiam. Jurei o meu silêncio! Hoje quebro este juramento ao partilhá-lo connvosco. Também o faço porque será muita coincidência que o Marcelo leia isto, perdemo-nos um do outro no tempo... não na vida!


Convivi com o Marcelo até ao 12º ano. Ele tornou-se aquilo a que se chamava um “estroina”… mas era um estroina com um brilho nos olhos! A mãe dele andava mais preocupada, mas até as aventuras e desventuras do Marcelo alegravam a sua vida! Às vezes, apercebia-me que volta e meia o Marcelo usava os seus 5 minutos! Mas não deixava que controlassem a sua vida, ele já sabia usar esse tempo a seu favor. Foi por esta altura que pensei que o Marcelo era realmente inteligente. Foi por esta altura que me deixei fascinar, não digo que me apaixonei, mas o Marcelo encantou a minha vida.


Às vezes, quando o achava mais desconcentrado, irritado, desorientado, dizia-lhe na brincadeira: “Marcelo andas a precisar de perder 5 minutos de vida!”. Ele ria-se!


Eu aprendi que há o meio termo. Às vezes tiro 5 minutos ao meu relógio para programar a minha vida.


Hoje acordei precisamente 5 minutos antes do despertador e não soube o que fazer com este 5 minutos a mais. Não me apeteceu programar nada, não consegui adormecer, muito menos sonhar… Pensei em ti Marcelo, durante 5 minutos inteirinhos!


Dedico-te os meus 5 minutos! Não programei nada para hoje, a não ser escrever-te para agradecer os 5 minutos que passamos neste recreio.


Obrigada, Marcelo!

3 comentários:

Susana Mateus disse...

gostei muito!
bjinhos

Tentativas Poemáticas disse...

Querida amiga Sofia

Passei para lhe desejar PÁSCOA FELIZ.

Espero que esteja tudo bem consigo.
Beijinhos com ternura.
António

Unknown disse...

Vi o seu comentário em Tentativas poemáticas e vim espreitar aqui nesta janela aberta.
Gostei muito dasta sua história.
Felizmente existem ainda Marcelos.
Como é bom encontrá-los e ser capaz de os entender e tambem ser capaz de perder pelo menos uma vez «cinco minutos»
No reverso da medalha também se tiram boas conclusões para programar o nosso dia.