terça-feira, março 17, 2009

MARCELO e os 5 minutos!



O Marcelo era um menino muito inteligente. Tinha o seu dia muito bem programado, desde o acordar ao deitar.. Quem reparasse no Marcelo, percebia que ele era um menino especial. Muito bem organizado e responsável, sabia o que queria e o que fazer para atingir os seus objectivos. Era perspicaz. Todos o admiravam, os professores e os seus colegas.


Todos os dias à noite o Marcelo escolhia a sua roupa para vestir no dia seguinte. Às vezes pedia ajuda à mãe, mas era raro. De manhã, o despertador tocava cedo, Marcelo acordava, espreguiçava-se… e virava-se para o outro lado mais 5 minutos!! Incrível! Quem soubesse disto, diria que o Marcelo era um preguiçoso de primeira! Mas não. Ele precisava destes 5 minutos, como precisava te todos os outros que vinham a seguir; dos 3 minutos para fazer o seu xixi e olhar o espelho, dos 10 minutos para se vestir, dos 8 para tomar o pequeno almoço, de 2 para lavar os dentes, de 1 para confirmar se tinha tudo na mochila e o último minuto era para dar um beijo e um abraço à sua mãe, antes de sair de casa… Mas antes destes minutos todos, Marcelo precisava daqueles 5 minutos! O Marcelo, sabia muito bem quanto tempo duravam estes 5 minutos, tal como sabia quando já se estavam a esgotar os restantes! Sabia quase ao segundo quando terminar uma tarefa e iniciar a outra. Num ápice, ao fim dos tais 5 minutos, Marcelo saltava da cama e continuava as suas tarefas, sempre atento ao tempo que fugia dele...


Os 5 minutos do Marcelo eram só dele, nem eram do tempo, nem do espaço, eram 5 minutos contados no relógio da vida. Era outro relógio que marcava estes 5 minutos, era um relógio sem ponteiros, nem de horas, nem de minutos. E nunca, nunca o Marcelo perdeu estes 5 minutos da vida!


Marcelo passava este 5 minutos com os olhos bem abertos, às vezes olhava pela janela, por onde fitava os raios de luz, ou perseguia uma gota de chuva a escorrer pelo vidro. Outras vezes, fixava os olhos no tecto, sempre bem abertos! Nestes 5 minutos ele planeava o seu dia, pensava muito bem em cada passo. O que tinha feito ontem, o que tinha que fazer hoje, como ia reagir a isto, como devia dizer aquilo... (Deduzo que o Marcelo só precisasse de 5 minutos porque ainda era uma criança, eu talvez precisasse de uma hora para planear outra hora...)


Era por causa destes 5 minutos que o Marcelo era um rapaz tão especial! Tão organizado! Impecável! Muito admirado pelos adultos! Que espectáculo de menino que era o Marcelo, nunca falhava pá! Irritava pela perfeição! Ele sabia que o admiravam, orgulhava-se disso, e por essa razão sempre se esforçou para manter este comportamento, era um compromisso com ele próprio! Não podia desiludir ninguém. Antecipava tudo, sabia a respostas todas na ponta da língua, andava sempre à frente dos outros, era aquilo a que eu chamo “chico esperto”. Eu não gostava muito do Marcelo, era irritante! Embora não fosse um miúdo muito convencido, a sua presença já me incomodava. Era o menino lindo, o menino prodígio, o menino perfeito, o exemplo a seguir, o menino de oiro… Bolas, Marcelo! Éramos todos crianças... e tu?


Um dia perguntei-lhe como é que ele conseguia ser assim, tão irritante!! E ele respondeu com um sorriso terno “...e só tenho 5 minutos, imagina se tivesse a vida inteira…” Na altura não percebi, só pensei que o gajo era parvo pela forma como respondia, era mesmo para eu não se perceber! Ou era eu que era mesmo burra? Não… era o gajo que era mesmo inteligente! Que raiva! De súbito pensei que o Marcelo estava doente e ia morrer em breve… só tinha 5 minutos, não tinha a vida inteira?!? hã?… Que disparate! Lembro-me de ter encolhido os ombros e não ter pensado mais nisso. Dali até à sala de aula o pensamento foi constante; "este puto é parvo, parvalhão… irritante! mas o que é que ele disse?!? ai que estúpido!! foi para me fazer de parva, claro! e depois aquele ar meigo... "nhãnhãnhã...", só mesmo ao estalo..." finalmente devo ter entrado na sala de aula porque não me recordo dos meus restantes desaforos.


O Marcelo era misterioso, e isso de alguma forma encantava-me e atraía-me para ele, portanto, não sei se gostava, se desgostava. Sei que não me era indiferente, isso não era!


Certo dia, o Marcelo chegou atrasado às aulas. Nunca tal tinha acontecido! A agitação e preocupação era geral, onde andava o Marcelo? Quando chegou, 5 minutos atrasado, entrou de cabeça baixa, pediu desculpa pelo atraso e sentou-se no seu lugar. Estava ofegante e muito rosado, suado... descomposto! Um silêncio sepulcral instalou-se na nossa sala de aula. Ficámos à espera da justificação… Nada! A professora também não pediu satisfações, mas olhou de soslaio para ele. A nossa curiosidade estava ao rubro mas ninguém falou! Ninguém falava muito com o Marcelo, tinhamos vergonha, porque ele era um ser superior a nós. Mas brincava connosco, não era excluido, nem pensar! Gostavamos da companhia dele, jogava bem à bola, tinha estratégia de jogo! Tinha ideias! Ele não era um lider, mas era aceite e respeitado por todos. Estava sempre ao pé de nós no recreio. Mas não neste recreio...


Neste recreio, ele afastou-se de todos, e foi para as escadas de pedra fria, onde se sentavam os rejeitados, aqueles putos que não brincam, que não falam, que não nada! Desinteressantes… Ali estava o Marcelo num lugar que não era o dele! Que imagem arrepiante… saí do meu jogo (aliás, da baliza!) e fui ter com ele...


- Que se passa Marcelo? Estás bem?
- Não se passa nada de especial, ‘tá tudo bem!
-Estás estranho! Chegaste atrasado, cabeça baixa, não falas, não dizes nada…
- Hoje perdi os meus 5 minutos! Mas não me apetece falar sobre isso – disse com um ar de culpa e de tristeza que nunca tinha visto naqueles olhos.
- E 5 minutos é assim tão importante? Credo, Marcelo…. Atrasaste-te 5 minutos, paciência! Adormeceste, foi?!
- Sim, adormeci...profundamente! Perdi os meus 5 minutos!


Porra, outra vez os 5 minutos??! Não há paciência… Que este gajo é mesmo irritante, caramba! 5 minutos, 5 minutos… Bem, tinha que ir para a baliza que estava completamente aberta... na minha baliza não entravam golos!! Ia levantar-me quando o Marcelo recomeçou o discurso;


- E ainda bem que perdi estes 5 minutos... percebi que ganhei os outros todos! - voltei a sentar-me ao seu lado, só por curiosidade - Sabes Ana, os meus 5 minutos eram para programar todos os restantes. E por isso eu era certo como um relógio, por isso eu tinha a resposta na ponta da língua, por isso eu não falhava… Hoje, adormeci durante os meus 5 minutos e não programei nada, de nada! E estou aqui, sem saber o que fazer hoje, o que pode acontecer, o que me podem perguntar, o que devo responder, quanto tempo já perdi, para onde vou… Estou desorientado, percebes?! Sinto-me sem chão, sinto que não controlo nada e que posso falhar e decepcionar as pessoas que me admiram. Eu não quero falhar, mas apercebo-me agora que quero viver… Repara, só estou há 3 horas sem ter a vida programada e já viste o que aconteceu?! Olha, não me despedi da minha mãe e só me lembrei disso no caminho; perdi o autocarro do costume e como o revisor não me conhecia tive que mostrar o passe que não encontrava em lado nenhum, nem na carteria, nem no bolso das calças... estava a ver que não o ia encontrar e comecei a transpirar de vergonha, toda a gente a olhar para mim! Depois lá encontrei o passe e fui sentar-me, olhei em frente e quem estava sentada mesmo nas minhas barbas?! A Catarina! A miúda do 6ºC, tu sabes... não tirou os olhos de mim e eu já me sentia a corar e com o coração ao saltos! Depois aproveitei que apareceu uma velhota e dei-lhe o meu lugar para sair daquele desconforto. Fiz uma boa acção! (sorriu com ironia) Finalmente, saí do autocarro, vim a correr, a correr para ver se conseguia chegar a hora, mas não! os ponteiros do relógio parece que corriam comigo! ...ai, que desespero! (esfregava a cabeça e despenteava o cabelo!) Ainda por cima, chego e sinto os vossos olhos a saltar para cima de mim e eu sem justificação! Comecei a rezar para a professora não me perguntar nada porque nem sequer tive tempo para pensar numa resposta inteligente… espera, estou sem fôlego! (até eu, estava sem fôlego só de o ouvir!) Como se não bastasse, reparei agora que não pus o meu lanche na mochila… Estou ansioso, irritado, angustiado... o meu coração bate, bate, bate...

- Bem... grande aventura Marcelo!! - disse eu com ironia!

Quantas vezes o meu lanche ficou em casa, quantos autocarros perdi, quantas vezes tive que gramar o parvalhão do Miguel no autocarro! E quantos milhões de vezes não me despedi da minha mãe antes de sair...


Mas quando olhava para os olhos do Marcelo, e para a forma como ele se despenteava todo, percebi que estava mesmo proecupado e assustado. Estava mesmo a viver aquele momento com muita intensidade... fiquei mais séria, verdadeiramente interessada e atenta ao que dizia.


- Pois... isto está a ser uma aventura! Posso dizer que já vivi mais emoções nestas 3 horas que no resto da minha vida! Percebes? E concluo, que afinal foi bom perder os meus 5 minutos! Embora não me sinta tão seguro, sinto-me... vivo! Mais autêntico! Fico sem saber o que faça. O que quero!? Viver uma vida segura, ou viver uma vida cheia de emoções, receios, surpresas, medos... respirar ofegante, correr, desesperar... Percebes, Ana?!


Eu percebi tudo. Mas fiquei sem palavras!


Neste recreio bebi as palavras gagas e ofegantes do Marcelo. Ai Marcelo, como me apeteceu abraçar-te neste momento! Que lição me deste para a vida por causa dos teus irritantes 5 minutos!


A partir deste recreio, o Marcelo tornou-se para mim um rapaz espectacular, embora para as pessoas em geral tenha perdido qualidades… Ouviamos dizer que era da minha má companhia…enfim, a Ana era sempre a má da fita! Riamos disso, porque só nós os dois sabiamos o que se passou. Crescemos os dois juntos no mesmo salto, naquele momento. Foi um salto para a vida...


Ninguém soube a história dos 5 minutos, o Marcelo achava a história dele tão ridícula que nunca me permitiu que eu a contasse… E eu percebia perfeitamente o Marcelo, por outro lado acho que as pessoas deviam perceber o que é vida, desta forma simples, por outro, éramos muito jovens, os nossos colegas não entenderiam. Jurei o meu silêncio! Hoje quebro este juramento ao partilhá-lo connvosco. Também o faço porque será muita coincidência que o Marcelo leia isto, perdemo-nos um do outro no tempo... não na vida!


Convivi com o Marcelo até ao 12º ano. Ele tornou-se aquilo a que se chamava um “estroina”… mas era um estroina com um brilho nos olhos! A mãe dele andava mais preocupada, mas até as aventuras e desventuras do Marcelo alegravam a sua vida! Às vezes, apercebia-me que volta e meia o Marcelo usava os seus 5 minutos! Mas não deixava que controlassem a sua vida, ele já sabia usar esse tempo a seu favor. Foi por esta altura que pensei que o Marcelo era realmente inteligente. Foi por esta altura que me deixei fascinar, não digo que me apaixonei, mas o Marcelo encantou a minha vida.


Às vezes, quando o achava mais desconcentrado, irritado, desorientado, dizia-lhe na brincadeira: “Marcelo andas a precisar de perder 5 minutos de vida!”. Ele ria-se!


Eu aprendi que há o meio termo. Às vezes tiro 5 minutos ao meu relógio para programar a minha vida.


Hoje acordei precisamente 5 minutos antes do despertador e não soube o que fazer com este 5 minutos a mais. Não me apeteceu programar nada, não consegui adormecer, muito menos sonhar… Pensei em ti Marcelo, durante 5 minutos inteirinhos!


Dedico-te os meus 5 minutos! Não programei nada para hoje, a não ser escrever-te para agradecer os 5 minutos que passamos neste recreio.


Obrigada, Marcelo!

sexta-feira, março 13, 2009

A culpa pode ser Dele...

Talvez um dia, quando Adão e Eva perceberem que a nudez era o seu escudo de protecção, o mundo voltará a ser o paraíso, e a maçã deixará de ser o fruto proibido e passará a ser um fruto doce e suculento, que alimenta o corpo e a alma.

Algures no tempo, longínquo e possivelmente inexistente, alguém cometeu um terrível erro. Mas quem? questiono-me…


Ora pensemos:

A culpa foi da cobra que convenceu Eva a comer o fruto proibido; foi da Eva porque o comeu, e sarcasticamente convenceu Adão a fazer o mesmo; ou foi do inútil do Adão que não impediu que Eva comesse o fruto, com a agravante de ele próprio o ter comido; ou ainda, pasmem-se as almas religiosas (como a minha)… a culpa foi de Deus?!

Vejamos:

Quem criou a cobra? E a Eva? Quem se lembrou de lhe arranjar um cúmplice, arrancando-lhe uma costela? E para terminar em beleza, quem criou o jardim cheio de árvores de frutos vermelhinhos, hoje em dia com o nome de maçã, naquele tempo, com o nome de “fruto proibido”?!?
Mas o que é que Deus estava a espera?! Parece-me que Ele criou tudo de forma a que o livre arbítrio fosse um fracasso, ou não? Estou enganada? Estou a perder a minha fé, a minha religiosidade, a minha crença? Ou estou a ver as coisas como elas são? Nuas e cruas?! Porque é que não se culpa Deus? Porque é que Deus só nos serve nas horas de aflição, nas horas de sofrimento? Porque é que a culpa nunca é de Deus mesmo quando nos leva cruelmente um ente querido que devia estar ao nosso lado, porque é que tudo de bom é “graças a Deus” e tudo de mau “ é a vida…” ?!?!

Vejamos novamente:

(naquele tempo, obviamente houve uma conversa que poderá ter sido a que vos apresento a seguir. Desta conversa não há testemunhas porque Deus só tinha criado 3 seres; uma mulher, um homem e uma cobra. Deste momento, nada ficou registado e comprovado, porque as mulheres são mentirosas, os homens não percebem o que se passa à sua volta, e as cobras, enfim, são animais irracionais e não falam. Pelo que, cada um pode pensar o que quiser da conversa entre Deus, Adão, Eva e a cobra. E porque não poderia ter sido assim?)

“Naquele fim de tarde, Deus aproximou-se de Adão e Eva e disse:

- Reparem na minha última criação! Estão a ver ali ao fundo, no vale? São árvores, criei-as para vos dar sombra, para vos proteger do sol que queima a vossa nudez. Não são lindas?

- Oh meu Deus, como és bondoso! Estás sempre a pensar em nós, ofereces-nos coisas maravilhosas – disse Eva, enternecida de gratidão.

- Mas atenção! – disse Deus – criei aquelas árvores só para vos dar sombra, nada mais! Não sei o que se passou, mas ao inventar as árvores aparecerem aquelas coisas vermelhinhas. São venenosas não se atrevam a comer, senão morrerão! Até que vos diga, por favor não se atrevam a comer daquilo. Parece perfeito, parece comestível, mas não é! Será o fruto proibido!

- Não te preocupes Deus, se nos mata, não nos atreveremos a tocar-lhe sequer! – disse Adão com confiança e firmeza. Naquele tempo, apesar de não se saber o que era morrer, Adão percebeu que era alguma coisa de muito mau. Tendo em conta que eles estavam no Céu e o Inferno ainda não existia, se morressem não saberiam muito bem para onde iriam, foi talvez o medo do desconhecido que assustou Adão.

Deus deixou Adão e Eva a contemplar a nova paisagem, e voltou para o seu castelo. Palácio? Nuvem? Céu? Bem, para o seu canto! Adão e Eva foram passear pelo jardim

- Anda Eva, vamos ver as árvores e sentir a sombra. Deus é realmente magnífico!

Deitaram-se por baixo de uma árvore, deram as mãos, e a sombra caía-lhes em cima do corpo, dando uma sensação de frescura e alívio da pele. Estavam felizes com a sombra, a criação de Deus revelava a sua imensa inteligência e bondade. Reparavam como os raios de luz passavam entre os ramos das árvores e desenhavam feixes de luz laranja nos seus corpos. Tentavam apanhar essa luz no corpo um do outro e divertiram-se durante um bom tempo, até que, exaustos voltaram a ficar quietos. Naquele tempo, ainda não existiam os preliminares, mas Adão e Eva revelavam grandes potencialidades. Os preliminares revelaram-se ser uma brincadeira muito cansativa e sem o efeito pretendido, razão pela qual Adão se aborreceu com a brincadeira, tendo sido esta prática abandonada desde então. (Obrigada Adão!)

- Já reparaste Adão, como aquele fruto vermelho é lindo? Não parece ter nada de venenoso, antes pelo contrário, até parece mesmo apetitoso! Vamos provar? Só uma dentadinha…

- Nem penses Eva! Deus disse que podíamos morrer, seja lá isso o que for, eu prefiro estar assim como estou! Deixa lá… esse fruto é proibido! Não sejas atrevida! Mas olhando bem, realmente o fruto até parece que nos faz água na boca, é melhor nem olharmos para ele.

- Tens razão, vamos embora e não olhemos mais para esse fruto até que Deus nos diga que já corrigiu o seu erro! – disse Eva.

Mas a sombra sabia tão bem, que acabaram por ficar ali mais algum tempo a contemplar o erro de Deus, porque é que era venenoso? Como é que Deus se enganou nessa criação, nem parecia dele… E se venenoso fosse uma coisa boa e eles perceberam mal? Um fruto assim tão bonito, tão apetitoso, parecia tudo menos venenoso! E assim nasceu no paraíso, aquilo a que hoje chamamos especulação!

Quando a especulação chegou ao fim, Adão deu a mão a Eva e levantaram-se para ir embora, a sombra também já não estava a ser tão agradável quanto isso… Já estavam os dois em pé, quando de repente aparece uma cobra que lhes disse:

- Vosssês vejam lá, não sssse atrevam messsmo a comer essssse fruto! Olhem que bassssta uma dentada para ficarem com a messsssma inteligência de Deus. Depoisssss não sabereisss o que fazzzzer com tanta inteligênccccia e ficareis loucos para sempre!

- Oh, ser inteligente como Deus! Que presunção! Mentes, cobra maldita! – Eva, ficou pensativa no que a cobra lhes disse. Ser inteligente… ela gostava de ser inteligente, mas não era preciso ser taaão inteligente como Deus, só um bocadinho… Talvez só uma dentadinha não fizesse mal… Ficava inteligente e mas não ficava louca! Naquele tempo a inteligência ainda não existia, mas Eva já revelava ser um ser com potencialidades!

- Eva, já te conheço, vamos aproveitar que já estamos em pé e vamos embora! É melhor sairmos debaixo desta árvore, deixa lá a sombra e fruto! Olha que nos arriscamos a levar com o fruto proibido em cima e ainda nos acontece alguma desgraça. Não queremos que Deus fique triste connosco! – disse Adão assustado.

Naquele tempo, ainda não existia a cobardia, mas Adão já revelava grandes potencialidades! Também foi Adão, que descobriu a teoria da gravidade, ao pensar que a maçã podia cair da árvore, mas foi Newton que patenteou esta ideia. Naquele tempo, ainda não existia raciocínio prático e lógico das coisas, pelo, se justifica que as potencialidades de Adão fossem nulas.

No meio de tanta potencialidade, Eva deu uma dentadinha na maçã, Adão foi levado por Eva e deu outra dentadinha na maçã (mais pequena, porque lembrem-se que tinha grandes potencialidades para a cobardia) e a cobra foi à sua vidinha…

E assim foi, Eva comprovou o que a cobra lhes dissera. Eva ficou inteligente, Adão, sofreu as consequências da sua miserável cobardia, pois nunca chegou a ficar inteligente, e ambos ficaram loucos para sempre!”

Esta poderia ter sido a história, que na realidade, não está longe da que é usualmente contada pelos contadores de histórias.

Agora as (minhas) questões:

Afinal, para que é que Deus foi criar a maçã? E porque lhe chamou o fruto proibido? Para que é que ele criou algo que era proibido, caramba??! Para quê?! Para testar a sua obra humana? Fez-nos um teste, com uma crueldade atroz! Mas de que é que ele estava a espera? Reparem; inventa um fruto demasiado apetitoso, mas é proibido. Para os levar até ao fruto, diz que inventou a sombra, e ainda por cima, como se não bastasse inventou a cobra! Qual era o teste afinal, e onde está aqui o livre arbítrio? É que com tanta invenção, tantas condicionantes, tantas merdas… o livre arbítrio deixou de existir, ou foi-lhes roubado! Houve obviamente um mau encaminhamento propositado! Senão, reparem na cereja em cima do bolo; para quê a cobra no fim de tudo, se eles já se iam embora sem comer a maçã…

Isto revolta-me. Mas atenção que há a possibilidade da história não ser nada assim conforme contei. Mas há essa possibilidade… É sobre esta possibilidade que estou a raciocinar.
No meu entendimento, Deus consegui errar duas vezes! Ou três… Primeiro criou um fruto proibido, depois criou humanos fracos, curiosos e desconfiados, tão desconfiados que foram provar o fruto! E porque é que eram desconfiados? Porque na realidade Deus não era de confiança, na verdade foi ele que introduziu no Paraíso um elemento podre!
Mas atenção que Deus ainda teve um momento de glória, porque se arrependeu do seu erro, e assumiu-o!
Passado uns anos, Deus arrependeu-se da sua obra e inventou o Dilúvio… Mas atenção que antes do dilúvio, ainda houve muitas desgraças; irmãos que mataram irmãos, guerras violentas, pragas, fogos, invejas, mentiras, traições… tudo igual, ao que vivemos hoje. Depois de tudo isto é que Deus se arrependeu, este arrependimento não terá vindo tarde demais?

Deus afinal é humano e nós feitos à sua imagem!
E afinal, quem nos criou assim, fracos e pecadores? Quem inventou o pecado… e quem nos deu acesso a ele?
E se ninguém pecasse, qual era a piada de andar neste paraíso de vida?!
E o que é que Deus está a fazer neste momento? Porque é que Deus não vê as guerras violentas, as crianças que morrem de fome, as suas mães que não as conseguem salvar, a ijustiça, as mães que matam os pais, os pais que matam os filhos, as depressões, o aquecimento global, a loucura… tudo! É que olhando à nossa volta, o mundo está assim! Para que canto do mundo Deus tem o seu olhar virado, caramba?!

É certo que o livre arbítrio somos nós que o escolhemos, temos que lutar pelo que queremos, temos que escolher os caminhos certos e evitar os errados. Mas porque é que os caminhos errados parecem os certos, e os certos parecem errados? Quem anda a brincar connosco? E quem é o Diabo? será a parte menos inteligente de Deus, aquele que falha?
Todos nós temos um lado negro! Todos nós erramos! Todos nós pecamos e nisso somos iguais… E o que seria da nossa vida se não pecássemos? A vida já é um inferno, o pecado será o nosso pedaço de céu! Só quando pecamos estamos felizes, obviamente que não estou a falar dos pecados capitais! Estou a falar do pecado de saborear uma simples maçã, que não mata, só nos adoça a boca, sacia a fome, mata a sede, e enfim… aparece simplesmente nas árvores que Deus criou!

Senhor, eu pequei, eu comi, eu alimentei-me, eu saciei a minha sede durante os breves segundos em que saboreei o pecado que me ofereceste. E só por causa disso, pelo prazer, pelo gozo, pela paz, o pecado valeu a pena.
Não sinto culpa, não sinto que errei, sinto apenas, que se não tivesses criado a maçã, a sombra e a cobra, e esta minha fraqueza...a culpa poderia ser toda minha! Assim, partilho-a contigo.

Será por isto que és infinitamente bom? Porque não permitiste que a culpa fosse só nossa? Porque carregas connosco as nossas culpas?

Obrigada Meu Deus, por todo o teu altruísmo...


Sim, a culpa é de todos! A culpa do bem e do mal é Nossa!

PS - Já agora, sugiro que comecem a imaginar Adão e Eva sem umbigo. Já que foram gerados por Deus, para quê o umbigo?! Nunca vi nenhuma representação relegiosa que omitisse o umbigo. Onde andava a inteligência artistica? Ou será que a presença do umbigo é uma afronta dos nossos antepassados que sempre duvidam que o Homem tenha sido criado por Deus? (isto dava mais pano para mangas... fiquemos por aqui)

Deixo-vos um poema, que me caiu nas mãos. Deliciem-se pecadores...

Deus é maneta
diz Saramago
só tem mão direita.
à direita da qual todos se sentam.
Eu canto a outra mão de Deus
a que traz o Diabo pela trela
a que por vezes puxa para o outro lado
e escreve sempre por linhas tortas
a mão esquerda de Deus
a mão de sombra
a mão do medo
a mão do nada
a mais perigosa mão de Deus
aquela que de repente solta o espírito
o enxofre a guerra o vento mau.
É a mão esquerda de Deus que aperta o coração
acelera o pulso
desarticula o ritmo.
Os poetas estão sentados à esquerda
da mão esquerda de Deus
até mesmo Antero.
É com ela que Deus abana o Mundo
com sua chuva e com seu fogo
sua onda gigante e seu terrível
terramoto.


Não é verdade que Deus seja maneta
Deus é canhoto.


Manuel Alegre "A perigosa mão de Deus"


sexta-feira, março 06, 2009

A CRIANÇA QUE NOS HABITA

Chegamos a adultos sem dar por isso. Ainda ontem era uma criança, dei um salto por cima de alguma coisa que desconheço, e subitamente olho para mim e sou adulta! É um processo radical, talvez comparável ao nascimento, em que, sem darmos por isso, ao passar por um canal de luz, passamos de seres não identificados para gente pequenina!

Alguns de nós fomos adultos à força e sem darmos por isso, esquecemo-nos da criança que fomos. Perdemo-nos dela no percurso da vida, na realidade, abandonamo-la algures.

Disseram-me no outro dia, que as crianças despertam em nós um sentimento de ternura e protecção, que os adultos não despertam. Eu compreendo isso. Mas talvez isto aconteça a pessoas que estejam habituadas a trabalhar com crianças diariamente. E as que não estão? É natural que um adulto desperte em nós esse sentimento de ternura, protecção e carinho incondicional, certo?

E depois pensei, realmente quando sinto isto em relação a um adulto é porque me dou conta que dentro desse adulto habita uma criança, dentro desse adulto há qualquer coisa de frágil e sensível, de pureza e de inocência. E quando encontramos esta criança dentro dum adulto, há então espaço para sentirmos vontade de o proteger, de o mimar e confortar. E sem nos apercebermos disso o nosso abraço conforta essa pessoa, como o abraço de um adulto, conforta e protege uma criança. É indiscutível… Penso até que esta manifestação de protecção e carinho é comparável ao amor.

Parece mágico um abraço assim, não sei se já experimentaram; um adulto que abraça a criança que habita no outro adulto; a criança que nos habita que é abraçada por um adulto; e melhor que tudo, duas crianças que habitam dois adultos que se abraçam perdidas, e se sentem protegidas.

Para experimentar esta sensação, basta encontrar no outro a criança que o habita, basta encontrar em nós a criança que fomos e mostrá-la sem receio da sua fragilidade e inocência.
As crianças são todas inocentes, não fazem juízos de valor, é por isso que no seu abraço não há avaliação disto ou daquilo, é apenas um abraço que tranquiliza e dá paz no meio da guerra dos adultos.
E este abraço é tão bom!

Era este o nosso abraço, quando conseguíamos ver as crianças que nos habitavam. Elas continuam cá, eu sei, eu sinto.
O mundo dos adultos é que nos cega, rouba-nos a esperança que se tem sempre que vemos uma criança...

Uma criança dá-nos esperança. Não percas a tua, não percas a minha...

Despeço-me...

O nosso abraço, puto!


quinta-feira, março 05, 2009

SAUDADES… (o que é isso?)

Sempre ouvi dizer que a palavra “saudade” não tinha tradução nas outras línguas. Talvez não tenha definição, nem entendimento, daí a dificuldade de tradução.
Para mim torna-se difícil definir, ou fazer com que entendam o que eu sinto quando digo “tenho saudades…”

Na verdade, nem eu sei muito bem o que são saudades… Saudades daquele tempo, saudades de alguém que partiu, saudades de alguém que não chega, saudades da comida da avó… Conseguimos dizer que temos saudades de tudo e mais alguma coisa, inclusive, de cheiros, sabores, paisagens, momentos, toques…

Depois existem outras palavras, como nostalgia, saudosismo, melancolia que tem uma carga de saudade, mas é uma saudade de profunda tristeza. Nem sempre sinto essa tristeza, algumas saudades fazem-me sorrir.

E aquelas saudades que nos perseguem? aquelas que não queremos sentir mas sentimos, aquelas que quanto mais queremos esquecer, mais se lembram de nós! Aquelas saudades irritantes! Aquelas que já nem são saudades, são um género de beliscão na carne, são aquelas que parecem um estalo na cara, são aquelas saudades que gritam “sinto a tua falta”. Aquelas saudades que se entrenham em nós, acordamos com elas, deitamo-nos com elas... e ficamos fartos delas?!

Ora, sentir saudades ou sentir a falta, não é a mesma coisa. Sentir a falta de alguém é mais doloroso, dói, deixa marca, acutila a alma, sufoca, desespera, desorienta, rouba-nos o suspiro...

Finalmente, aparece o momento em que temos oportunidade de matar saudades... e não conseguimos!! Nem sempre se conseguem matar as saudades todas, fica sempre alguma coisa no peito, nem o abraço mais profundo consegue matar esta saudade. E quando parece que consegue, é porque afinal não eram saudades, ou eram?? E sentimos as coisas de formas diferentes?

No meio deste rodopio desentendido do que é a saudade, já não sei se sinto saudades, se sinto a falta… sei que sinto um vazio que antes não existia em mim.

Definitivamente, o que não gosto, é ter que ser eu a matar as minhas próprias saudades. Matar saudades que já não fazem sentido, matar saudades que são só minhas.
Destruir saudades, apagar memórias, querer esquecer, é um processo de autodestruição consciente e doloroso, afagado em lágrimas sem sal...

Não há tempo certo para sentir, ou deixar de sentir saudades. Infelizmente não se controla isso. Mas as saudades que são só minhas, ficarão em segredo, ficarão só para mim, ficarão num sufocado silêncio que grita “sinto a tua falta”.

E este, é um grito mudo, ao ouvido de um surdo, que ainda por cima é cego!

Desisto em silêncio, na esperança que ainda tenhas tacto, e percebas isto durante um abraço...