O Marcelo era um menino muito inteligente. Tinha o seu dia muito bem programado, desde o acordar ao deitar.. Quem reparasse no Marcelo, percebia que ele era um menino especial. Muito bem organizado e responsável, sabia o que queria e o que fazer para atingir os seus objectivos. Era perspicaz. Todos o admiravam, os professores e os seus colegas.
Todos os dias à noite o Marcelo escolhia a sua roupa para vestir no dia seguinte. Às vezes pedia ajuda à mãe, mas era raro. De manhã, o despertador tocava cedo, Marcelo acordava, espreguiçava-se… e virava-se para o outro lado mais 5 minutos!! Incrível! Quem soubesse disto, diria que o Marcelo era um preguiçoso de primeira! Mas não. Ele precisava destes 5 minutos, como precisava te todos os outros que vinham a seguir; dos 3 minutos para fazer o seu xixi e olhar o espelho, dos 10 minutos para se vestir, dos 8 para tomar o pequeno almoço, de 2 para lavar os dentes, de 1 para confirmar se tinha tudo na mochila e o último minuto era para dar um beijo e um abraço à sua mãe, antes de sair de casa… Mas antes destes minutos todos, Marcelo precisava daqueles 5 minutos! O Marcelo, sabia muito bem quanto tempo duravam estes 5 minutos, tal como sabia quando já se estavam a esgotar os restantes! Sabia quase ao segundo quando terminar uma tarefa e iniciar a outra. Num ápice, ao fim dos tais 5 minutos, Marcelo saltava da cama e continuava as suas tarefas, sempre atento ao tempo que fugia dele...

Os 5 minutos do Marcelo eram só dele, nem eram do tempo, nem do espaço, eram 5 minutos contados no relógio da vida. Era outro relógio que marcava estes 5 minutos, era um relógio sem ponteiros, nem de horas, nem de minutos. E nunca, nunca o Marcelo perdeu estes 5 minutos da vida!
Marcelo passava este 5 minutos com os olhos bem abertos, às vezes olhava pela janela, por onde fitava os raios de luz, ou perseguia uma gota de chuva a escorrer pelo vidro. Outras vezes, fixava os olhos no tecto, sempre bem abertos! Nestes 5 minutos ele planeava o seu dia, pensava muito bem em cada passo. O que tinha feito ontem, o que tinha que fazer hoje, como ia reagir a isto, como devia dizer aquilo... (Deduzo que o Marcelo só precisasse de 5 minutos porque ainda era uma criança, eu talvez precisasse de uma hora para planear outra hora...)
Era por causa destes 5 minutos que o Marcelo era um rapaz tão especial! Tão organizado! Impecável! Muito admirado pelos adultos! Que espectáculo de menino que era o Marcelo, nunca falhava pá! Irritava pela perfeição! Ele sabia que o admiravam, orgulhava-se disso, e por essa razão sempre se esforçou para manter este comportamento, era um compromisso com ele próprio! Não podia desiludir ninguém. Antecipava tudo, sabia a respostas todas na ponta da língua, andava sempre à frente dos outros, era aquilo a que eu chamo “chico esperto”. Eu não gostava muito do Marcelo, era irritante! Embora não fosse um miúdo muito convencido, a sua presença já me incomodava. Era o menino lindo, o menino prodígio, o menino perfeito, o exemplo a seguir, o menino de oiro… Bolas, Marcelo! Éramos todos crianças... e tu?
Um dia perguntei-lhe como é que ele conseguia ser assim, tão irritante!! E ele respondeu com um sorriso terno “...e só tenho 5 minutos, imagina se tivesse a vida inteira…” Na altura não percebi, só pensei que o gajo era parvo pela forma como respondia, era mesmo para eu não se perceber! Ou era eu que era mesmo burra? Não… era o gajo que era mesmo inteligente! Que raiva! De súbito pensei que o Marcelo estava doente e ia morrer em breve… só tinha 5 minutos, não tinha a vida inteira?!? hã?… Que disparate! Lembro-me de ter encolhido os ombros e não ter pensado mais nisso. Dali até à sala de aula o pensamento foi constante; "este puto é parvo, parvalhão… irritante! mas o que é que ele disse?!? ai que estúpido!! foi para me fazer de parva, claro! e depois aquele ar meigo... "nhãnhãnhã...", só mesmo ao estalo..." finalmente devo ter entrado na sala de aula porque não me recordo dos meus restantes desaforos.
Certo dia, o Marcelo chegou atrasado às aulas. Nunca tal tinha acontecido! A agitação e preocupação era geral, onde andava o Marcelo? Quando chegou, 5 minutos atrasado, entrou de cabeça baixa, pediu desculpa pelo atraso e sentou-se no seu lugar. Estava ofegante e muito rosado, suado... descomposto! Um silêncio sepulcral instalou-se na nossa sala de aula. Ficámos à espera da justificação… Nada! A professora também não pediu satisfações, mas olhou de soslaio para ele. A nossa curiosidade estava ao rubro mas ninguém falou! Ninguém falava muito com o Marcelo, tinhamos vergonha, porque ele era um ser superior a nós. Mas brincava connosco, não era excluido, nem pensar! Gostavamos da companhia dele, jogava bem à bola, tinha estratégia de jogo! Tinha ideias! Ele não era um lider, mas era aceite e respeitado por todos. Estava sempre ao pé de nós no recreio. Mas não neste recreio...
- Que se passa Marcelo? Estás bem?
- Não se passa nada de especial, ‘tá tudo bem!
-Estás estranho! Chegaste atrasado, cabeça baixa, não falas, não dizes nada…
- Hoje perdi os meus 5 minutos! Mas não me apetece falar sobre isso – disse com um ar de culpa e de tristeza que nunca tinha visto naqueles olhos.
- E 5 minutos é assim tão importante? Credo, Marcelo…. Atrasaste-te 5 minutos, paciência! Adormeceste, foi?!
- Sim, adormeci...profundamente! Perdi os meus 5 minutos!
Porra, outra vez os 5 minutos??! Não há paciência… Que este gajo é mesmo irritante, caramba! 5 minutos, 5 minutos… Bem, tinha que ir para a baliza que estava completamente aberta... na minha baliza não entravam golos!! Ia levantar-me quando o Marcelo recomeçou o discurso;
- E ainda bem que perdi estes 5 minutos... percebi que ganhei os outros todos! - voltei a sentar-me ao seu lado, só por curiosidade - Sabes Ana, os meus 5 minutos eram para programar todos os restantes. E por isso eu era certo como um relógio, por isso eu tinha a resposta na ponta da língua, por isso eu não falhava… Hoje, adormeci durante os meus 5 minutos e não programei nada, de nada! E estou aqui, sem saber o que fazer hoje, o que pode acontecer, o que me podem perguntar, o que devo responder, quanto tempo já perdi, para onde vou… Estou desorientado, percebes?! Sinto-me sem chão, sinto que não controlo nada e que posso falhar e decepcionar as pessoas que me admiram. Eu não quero falhar, mas apercebo-me agora que quero viver… Repara, só estou há 3 horas sem ter a vida programada e já viste o que aconteceu?! Olha, não me despedi da minha mãe e só me lembrei disso no caminho; perdi o autocarro do costume e como o revisor não me conhecia tive que mostrar o passe que não encontrava em lado nenhum, nem na carteria, nem no bolso das calças... estava a ver que não o ia encontrar e comecei a transpirar de vergonha, toda a gente a olhar para mim! Depois lá encontrei o passe e fui sentar-me, olhei em frente e quem estava sentada mesmo nas minhas barbas?! A Catarina! A miúda do 6ºC, tu sabes... não tirou os olhos de mim e eu já me sentia a corar e com o coração ao saltos! Depois aproveitei que apareceu uma velhota e dei-lhe o meu lugar para sair daquele desconforto. Fiz uma boa acção! (sorriu com ironia) Finalmente, saí do autocarro, vim a correr, a correr para ver se conseguia chegar a hora, mas não! os ponteiros do relógio parece que corriam comigo! ...ai, que desespero! (esfregava a cabeça e despenteava o cabelo!) Ainda por cima, chego e sinto os vossos olhos a saltar para cima de mim e eu sem justificação! Comecei a rezar para a professora não me perguntar nada porque nem sequer tive tempo para pensar numa resposta inteligente… espera, estou sem fôlego! (até eu, estava sem fôlego só de o ouvir!) Como se não bastasse, reparei agora que não pus o meu lanche na mochila… Estou ansioso, irritado, angustiado... o meu coração bate, bate, bate...
Neste recreio bebi as palavras gagas e ofegantes do Marcelo. Ai Marcelo, como me apeteceu abraçar-te neste momento! Que lição me deste para a vida por causa dos teus irritantes 5 minutos!

Convivi com o Marcelo até ao 12º ano. Ele tornou-se aquilo a que se chamava um “estroina”… mas era um estroina com um brilho nos olhos! A mãe dele andava mais preocupada, mas até as aventuras e desventuras do Marcelo alegravam a sua vida! Às vezes, apercebia-me que volta e meia o Marcelo usava os seus 5 minutos! Mas não deixava que controlassem a sua vida, ele já sabia usar esse tempo a seu favor. Foi por esta altura que pensei que o Marcelo era realmente inteligente. Foi por esta altura que me deixei fascinar, não digo que me apaixonei, mas o Marcelo encantou a minha vida.
Eu aprendi que há o meio termo. Às vezes tiro 5 minutos ao meu relógio para programar a minha vida.
Hoje acordei precisamente 5 minutos antes do despertador e não soube o que fazer com este 5 minutos a mais. Não me apeteceu programar nada, não consegui adormecer, muito menos sonhar… Pensei em ti Marcelo, durante 5 minutos inteirinhos!
Dedico-te os meus 5 minutos! Não programei nada para hoje, a não ser escrever-te para agradecer os 5 minutos que passamos neste recreio.