O
vagabundo é um ser livre.
O
vagabundo é um ser que vive só e não sabe viver com mais ninguém.
Chega-lhe
a sua própria companhia, e a companhia das recordações, das saudades e dos
amores perdidos. Alguns usam a companhia do cão vadio, para receber um olhar -
olhos nos olhos - do único ser que os entende.
O
Vagabundo conta só com ele. A vida dos outros não lhe interessa e a dele é
pouco interessante, embora a maquilhe de algum interesse.
O
Vagabundo faz o que quer, às horas que quer, quando quer, sem ter que dar
justificações a ninguém. Não ter que dar justificações a ninguém, significa que
algures no tempo, o pai e mãe, filhos, filhas, irmãos, primos, tios, sobrinhos,
despareceram. Desapareceram da sua vida, desmaterializaram-se do seu pensamento.
Não
ter ninguém é não ter antecedentes, nem precedentes. É também não ter amigos –
a não ser o cão vadio – se o tiver! Não ter ninguém, é de facto ficar livre de
dar satisfações a quem quer que seja - é um privilégio! - eu diria que é um
hábito, um silêncio triste.
Amar
um Vagabundo pode acontecer. Se acontecer pode ser tomado como uma tormenta.
Mas podemos tornar tudo uma aventura: uma volta numa montanha russa sem
manutenção de carris; uma viagem de canoa furada no alto mar; um mergulho dum
penhasco a profundidade desconhecida; uma viagem de comboio sem bilhete e sem
destino.
Por
mais que queiramos cuidar deste Amado Vagabundo, o momento em que se consegue será
efémero. Vamos sentir adrenalina mas apenas temporariamente - no instante. Vamos
viver o momento sem pensar no momento seguinte. O momento do amor é aquele,
naquele instante, naquele presente, naquele olhar - e não noutro qualquer - que há-de vir, ou
não!
É
neste olhar que se pode dizer que há amor. Dali para a frente
não há mais nada senão a vida maquilhada lá fora. Estes olhares não se explicam, por
isso ninguém entende. Entenderá, quem um dia amou um vagabundo - mas somos tão
poucos!
Não
adianta levar o Vagabundo para nossa casa com promessas de coisas que ele não
quer. Para quê dar-lhe um banho e pô-lo perfumado, se ele só se reconhece e se
conforta no seu cheiro? Para quê aparar-lhe a barba, se ele gosta de a coçar e lhe
catar os piolhos? Para quê dar-lhe roupas novas se já tem as dele moldadas ao
corpo? Para quê dar-lhe um tecto com paredes, quando ele aprecia ver as
estrelas na aragem da noite? Para quê dar-lhe uma cama macia, quando o
seu chão é confortável? Para quê? A casa do Vagabundo é a
rua... para quê fechá-lo nas nossas casas?
Se
amas um vagabundo, então pega em ti e vai para a rua... Torna-te vagabundo! Não, não faças isso. Cada um tem a sua natureza, a sua essência. Mas aproveita
os momentos. Aqueles momentos opulentamente pobres, em que lhe serves uma sopa
quente e ele elogia docemente o sabor. Aproveita o momento em que lhe dás um
cobertor e ele te agradece meigamente o conforto dessa noite. Aproveita o
momento em que pousas a tua mão na dele, e ele comenta emocionado, que "há muito
tempo não me abraçavam assim".
Amar
um Vagabundo é um momento fugaz. Vale aproveitar o momento, em que
olhos-nos-olhos, não há nada a dizer. Amar um Vagabundo é abrir as portas do
coração na certeza de que um dia a liberdade o vai levar. É manter essas portas
abertas, na esperança que a liberdade o traga de volta. Amar um Vagabundo pode
ser, afinal, eterno. E é...
O
Vagabundo pode dormir na nossa rua. Podemos vê-lo da nossa janela. Podemos
confirmar a sua presença que nos tranquiliza. Podemos nem o ver, mas perceber
que ainda vive na nossa rua. Ali, ele largou os seus sacos, os seus cartões de
papelão, os seus farrapos fétidos - os seus mais estimados pertences!
Ali,
na nossa rua, ele habita, ele marca presença. E só percebemos que foi embora
quando, inesperadamente, vamos à janela e não vemos os seus pertences. Foi
embora sem dizer nada. Quem sabe volta.
Quem sabe não volta mais. Quem sabe o que é feito dele?
Percebemos
que foi embora, quando a luz da nossa janela já não o ilumina cá em baixo.
Quando a nossa luz não faz falta, quando é indiferente estar acesa ou apagada.
Reparamos que foi embora quando já não lhe dizemos "boa noite" em
silêncio, quando apagamos a luz e vamos para a cama. Percebemos que foi embora
quando já os nossos olhos se perdem desinteressados noutro canto da rua, onde
não há Vagabundo, onde não há nada, senão boas distracções.
O
Amado Vagabundo desapareceu desta rua. Esta rua já não é a mesma. A minha
janela já não tem a luz acesa como antes – o que é triste. Tudo mudou. Mudou
tudo nesta rua miserável sem Vagabundo! Parece trágica percepção da realidade. Para
quê dramatismos? Na verdade está tudo na mesma, com excepção da presença dum
simples Vagabundo!
Todas
as noites passo pela janela e olho desinteressada para aquele canto da rua. "Não
está. Não volta. Pode ser que volte".
Só me lembro dele quando apago a luz, antes de ir para a cama.
Não tenho saudades. Mas faz-me falta.
Todas as noites apago a luz, e a minha janela, desaparece na escuridão da nossa rua.
-
"Boa noite"
1 comentário:
houve momentos teus com o Amado Vagabundo de que gostei mesmo muito!
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