terça-feira, junho 05, 2012

AMADO VAGABUNDO


Amar um vagabundo parece impossível.

O vagabundo é um ser livre.

O vagabundo é um ser que vive só e não sabe viver com mais ninguém.
Chega-lhe a sua própria companhia, e a companhia das recordações, das saudades e dos amores perdidos. Alguns usam a companhia do cão vadio, para receber um olhar - olhos nos olhos - do único ser que os entende.
O Vagabundo conta só com ele. A vida dos outros não lhe interessa e a dele é pouco interessante, embora a maquilhe de algum interesse.
O Vagabundo faz o que quer, às horas que quer, quando quer, sem ter que dar justificações a ninguém. Não ter que dar justificações a ninguém, significa que algures no tempo, o pai e mãe, filhos, filhas, irmãos, primos, tios, sobrinhos, despareceram. Desapareceram da sua vida, desmaterializaram-se do seu pensamento.
Não ter ninguém é não ter antecedentes, nem precedentes. É também não ter amigos – a não ser o cão vadio – se o tiver! Não ter ninguém, é de facto ficar livre de dar satisfações a quem quer que seja - é um privilégio! - eu diria que é um hábito, um silêncio triste.

Amar um Vagabundo pode acontecer. Se acontecer pode ser tomado como uma tormenta. Mas podemos tornar tudo uma aventura: uma volta numa montanha russa sem manutenção de carris; uma viagem de canoa furada no alto mar; um mergulho dum penhasco a profundidade desconhecida; uma viagem de comboio sem bilhete e sem destino.
Por mais que queiramos cuidar deste Amado Vagabundo, o momento em que se consegue será efémero. Vamos sentir adrenalina mas apenas temporariamente - no instante. Vamos viver o momento sem pensar no momento seguinte. O momento do amor é aquele, naquele instante, naquele presente, naquele olhar - e não noutro qualquer - que há-de vir, ou não!
É neste olhar que se pode dizer que há amor. Dali para a frente não há mais nada senão a vida maquilhada lá fora. Estes olhares não se explicam, por isso ninguém entende. Entenderá, quem um dia amou um vagabundo - mas somos tão poucos!

Não adianta levar o Vagabundo para nossa casa com promessas de coisas que ele não quer. Para quê dar-lhe um banho e pô-lo perfumado, se ele só se reconhece e se conforta no seu cheiro? Para quê aparar-lhe a barba, se ele gosta de a coçar e lhe catar os piolhos? Para quê dar-lhe roupas novas se já tem as dele moldadas ao corpo? Para quê dar-lhe um tecto com paredes, quando ele aprecia ver as estrelas na aragem da noite? Para quê dar-lhe uma cama macia, quando o seu chão é confortável? Para quê? A casa do Vagabundo é a rua... para quê fechá-lo nas nossas casas?

Se amas um vagabundo, então pega em ti e vai para a rua... Torna-te vagabundo! Não, não faças isso. Cada um tem a sua natureza, a sua essência. Mas aproveita os momentos. Aqueles momentos opulentamente pobres, em que lhe serves uma sopa quente e ele elogia docemente o sabor. Aproveita o momento em que lhe dás um cobertor e ele te agradece meigamente o conforto dessa noite. Aproveita o momento em que pousas a tua mão na dele, e ele comenta emocionado, que "há muito tempo não me abraçavam assim".
Amar um Vagabundo é um momento fugaz. Vale  aproveitar o momento, em que olhos-nos-olhos, não há nada a dizer. Amar um Vagabundo é abrir as portas do coração na certeza de que um dia a liberdade o vai levar. É manter essas portas abertas, na esperança que a liberdade o traga de volta. Amar um Vagabundo pode ser, afinal, eterno. E é...

O Vagabundo pode dormir na nossa rua. Podemos vê-lo da nossa janela. Podemos confirmar a sua presença que nos tranquiliza. Podemos nem o ver, mas perceber que ainda vive na nossa rua. Ali, ele largou os seus sacos, os seus cartões de papelão, os seus farrapos fétidos - os seus mais estimados pertences!
Ali, na nossa rua, ele habita, ele marca presença. E só percebemos que foi embora quando, inesperadamente, vamos à janela e não vemos os seus pertences. Foi embora sem dizer nada.  Quem sabe volta. Quem sabe não volta mais. Quem sabe o que é feito dele?
Percebemos que foi embora, quando a luz da nossa janela já não o ilumina cá em baixo. Quando a nossa luz não faz falta, quando é indiferente estar acesa ou apagada. Reparamos que foi embora quando já não lhe dizemos "boa noite" em silêncio, quando apagamos a luz e vamos para a cama. Percebemos que foi embora quando já os nossos olhos se perdem desinteressados noutro canto da rua, onde não há Vagabundo, onde não há nada, senão boas distracções.
O Amado Vagabundo desapareceu desta rua. Esta rua já não é a mesma. A minha janela já não tem a luz acesa como antes – o que é triste. Tudo mudou. Mudou tudo nesta rua miserável sem Vagabundo! Parece trágica percepção da realidade. Para quê dramatismos? Na verdade está tudo na mesma, com excepção da presença dum simples Vagabundo!
Todas as noites passo pela janela e olho desinteressada para aquele canto da rua. "Não está. Não volta. Pode ser que volte".
Só me lembro dele quando apago a luz, antes de ir para a cama.

Não tenho saudades. Mas faz-me falta.
Todas as noites apago a luz, e a minha janela, desaparece na escuridão da nossa rua.   
- "Boa noite"

1 comentário:

sara disse...

houve momentos teus com o Amado Vagabundo de que gostei mesmo muito!