Éramos um grupo de poucos, mas suficientes para nos sentirmos como grupo. Todos os anos íamos acampar para o Alentejo durante as férias, éramos sempre os mesmos. Era como um ritual estival, que se repetia na organização das coisas; as tendas, os saco cama, os carros que iam, a marcação do parque, a comida, os tachos… era tudo combinado ao pormenor para nada falhar. Ao longo dos anos fomos melhorando esta tarefa, tornando-se tudo mais simples, prático e eficaz! Ainda me lembro das primeiras férias, a quantidade de coisas que levámos que não fizeram falta para nada, e as coisas que não levamos que nos fizeram tanta falta! Era tudo diferente do que planeávamos. A comida que não comemos, os jogos que não jogámos, as sestas que não dormimos, os mergulhos matinais que não fizemos porque preferimos dormir. Era conforme o que nos apetecesse! Apesar de estarmos em grupo, sempre respeitámos a individualidade do outro, portanto cada um fazia o que lhe apetecia! Às vezes lá nos apetecia fazer a mesma coisa…
O Alentejo é caracterizado pelas suas noites quentes e calmas. Mas este Alentejo que vos falo, era caracterizado por noites muuuito quentes e demasiado calmas. Ali não se passava praticamente nada, era um santo lugar para descansar! Tínhamos uma vista privilegiada sobre o mar… Estávamos num lugar chamado Porto Covo, lugar magnifico, muito pacato… Para nós aquilo era o fim do mundo, mas um fim do mundo agradável. Ali, praticamente só havia uma rua, fazia a ligação do parque de campismo ao mar… Era a rua das lojas, dos restaurantes, dos artistas nocturnos, das esplanadas, de tudo… era “a” rua! Para nós, a única rua!
Mas nós lá íamos ver o que se passava… a actividade nocturna era a loucura!! O que mais marcava a paisagem era o mar e as caravanas, que na altura ainda se podiam estacionar junto aos precipícios. Claro está, que neste local os cafés e restaurantes fechavam quando a lua ainda mal se tinha visto, havia apenas um barzinho, cujo nome não me recordo, que albergava a juventude, mas às vezes preferíamos ir para as nossas tendas conversar. O ambiente do parque de campismo era envolvente, era propício a grandes conversas, facilmente trocávamos uma noite no bar barulhento por uma noite de conversas nas nossas tendas.
Tínhamos que inventar coisas para fazer durante a noite, e o que inventávamos!! Algumas são incontáveis, outra vale a pena partilhar. Hoje lembrei-me de partilhar uma destas noite com vocês.
Nesta noite, tínhamos ido ao café local, onde já nos conheciam por sermos um grupo bem disposto. Jogávamos snooker a pares, fazíamos equipas com outros campistas que não conhecíamos de lado nenhum. Bebíamos o famoso “Licor Beirão” muito antes de aparecer nos anúncios de televisão!
Depois de nos distrairmos com o jogo, e de termos gasto os trocos todos destinados a essa noite, regressamos às tendas. Habitualmente quando íamos para o parque montávamos a nossa mesa, jogávamos às cartas ou aos dados de poker. Tínhamos conversas interessantes, filosóficas demais para a nossa idade. Às vezes, o Vasco lá ia buscar a viola e nós tentávamos acompanhar, mas o reportório já se tornava repetitivo e desistíamos. Nesta noite jogámos, falámos, tocámos e cantámos, até que ouvimos a vizinha da tenda do lado “podiam cantar mais baixinho, não é que cantem mal, mas fazem muito barulho” – ora para cantar baixinho o mesmo reportório do costume, ainda por cima estávamos a incomodar... metemos a viola no saco e decidimos ir dormir!
Desmontamos a mesa e fomos para as tendas, claro que não era para dormir, ainda tínhamos que traçar os planos para o dia seguinte! Planos estes que nunca eram cumpridos, mas ao menos ficava registado o que cada um gostaria de fazer. O que o Vasco gostava de fazer era ir a pesca de manhã, mas gostava muito mais de dormir, por isso raramente ia a pesca! Eu, tal como o Vasco gostava era de dormir! Neste grupo não havia ninguém madrugador, mas se alguém se levantasse para fazer alguma coisa, os outros também se iam levantando, embora o que se levantava primeiro, já se levantava tarde! Na realidade, o que nos obrigava a levantar era mesmo o calor que se fazia sentir dentro das tendas… Às tantas era insuportável, mas chegávamos ao cúmulo de sair só quando já estávamos a transpirar! Éramos loucos, mas na altura ainda tínhamos tempo para gastar a dormir!
Nesta noite, não chegamos a combinar nada. Arrumámos a mesa e fomos para as tendas. Na minha tenda dormíamos três pessoas, na outra dormiam os pombinhos… éramos portanto cinco! Nessa noite, os pombinhos foram dormir, era o que eles diziam, mas nós bem os ouvíamos a sonhar alto!
Lembro-me de ter ficado a arrumar as coisas, as bolachas, o café, o açúcar, tudo! Porque as formigas e o sol matinal destruíam tudo, nada podia ficar entregue à natureza. Enquanto eu arrumava, os pombinhos desapareceram, ficaram por ali o Manel e a Marta que dormiam comigo. Eles foram andando para a tenda… Eu fui a última a entrar na tenda, quando entrei, eles, estranhamente estavam deitados com os olhos abertos e num silêncio profundo, um silêncio que me incomodou porque aquilo não era habitual… Normalmente ficávamos sentados a partilhar um pacote de batatas fritas, ou a comer daquelas porcarias que davam pelo nome de marchemelos, que assávamos na ponta do isqueiro! Esta noite não, esta noite deitámo-nos em silêncio! Em silêncio…
Sabíamos uns dos outros que não dormíamos, nenhum de nós estava a dormir, eu sabia porque sentia os olhos deles abertos. E esta percepção dos olhos abertos no silêncio estava a mexer comigo, estava a mexer com todos! Nenhum se atreveu a quebrar o silêncio… Este silêncio demorou algum tempo, o tempo necessário para começar a ficar confortável e para nos perdermos em pensamentos. Parecia que comunicávamos sem palavras, mantivemos um diálogo aberto sem saber o que outro dizia, estávamos na realidade a fazer um monólogo na esperança que aquela cabeça tão encostada à nossa ouvisse o nosso pensamento.
Sufocadamente saiu um suspiro da boca do Manel. A Marta não reagiu, eu também não. Continuámos imóveis… Dei por mim a reparar que nesta noite conseguia ver as estrelas através da tenta! Como é que eu nunca tinha reparado no céu?! A nossa tenda era uma canadiana, beije com uma cobertura castanha escura. Pouca luz passava, só a daquele candeeiro irritante que se ligava automaticamente sempre que passava alguém, ou às vezes, ninguém.
Perdi-me no meu pensamento, perdi-me deles quando me fixei no infinito do céu estrelado! Que magnífico! Era um céu ímpar, muito parecido com o meu céu encantado que só conseguia ver na minha aldeia, em Trás-os-Montes. Que espectáculo! Havia tantas, tantas estrelinhas, pequeninas e brilhantes, via-se nitidamente a estrela polar. Tentei descobrir as constelações, e algumas ali estavam, pareciam que iam cair e invadir o vazio da nossa tenda. Expectante, aguardava o aparecimento de uma estrela cadente para pedir um desejo, que desejo pediria se aparecesse? Dei por mim a viajar neste mar de céu e a gozar o momento, com a certeza de estar a partilhar com aquelas duas pessoas a mesma coisa - o céu do Alentejo! Só ouvíamos o bater dos nossos corações, o pestanejar dos olhos e as respirações. Subitamente o silêncio foi quebrado! O Manel falou entre dentes… “que cena!” foi o que ele disse.
Decidi quebrar o silêncio e perguntei à Marta em que é que ela estava a pensar;
- Sei lá, já pensei em tanta coisa! Mas agora estava a pensar no céu, no infinito, em como somos pequeninos! Não somos nada! Pensei em Deus, será que existe e nos está a ver aqui feitos parvos?! Pensei que amanhã estará bom tempo porque o céu está estrelado e que podemos ir à pesca! Pensei que ainda deve ser cedo porque a estrela polar ainda se vê aqui tão perto! Será que o nosso destino está mesmo escrito nas estrelas? Como é que isso é possível?! Estava a curtir este silêncio e a sentir que somos especiais, somos pessoas iluminadas como as estrelas… oh, sei lá, estava a pensar palermices! – disse a Marta com o seu tom de voz calmo e sereno.
Eu estava a pensar mais ou menos a mesma coisa, estava a curtir o céu! Na realidade, tal como a Marta, eu estava a pensar palermices! Finalmente, ainda deitadas, eu e a Marta deixamos cair as cabeças para o lado para encontrar o olhar uma da outra e sorrimos com uma ternura incrível porque nos entendemos num momento. Depois certamente tivemos o mesmo pensamento ao mesmo tempo; em que estaria a pensar o Manel?!
- E tu Manel, em que pensas? – perguntou a Marta virando a cara para o outro lado.
- Eu… nem sei se estou a pensar. Eu estou simplesmente perplexo com vocês! Vocês são incríveis, não existem!! Como é que é possível?!
Eu fiquei surpresa com esta resposta porque não percebi, a Marta voltou a olhar para mim com aquele ar habitual do “o que é que se passa com ele agora?! Passou-se!”. Portanto, o Manel estava noutra, eu e a Marta estávamos na mesma sintonia! Fomos novamente interrompidas pelas palavras agressivamente calmas do Manel. Parecia indignado, pasmo - e estava!
- Vocês só podem estar a gozar comigo! Estão para aí feitas parvas a olhar para o céu… e as estrelas e as estrelinhas… que somos pequeninos… que Deus isto e aquilo… Eu estive a pensar em quem é que nos terá feito isto à tenda!
“ISTO o quê?!” Perguntei a mim mesma, sobressaltada!
De repente, saí do meu transe e cai na realidade!! De facto, o Manel tinha razão… a tenda estava completamente destruída! Comecei a reparar naqueles farrapos castanhos pendurados, pareciam estalactites de tecido! Eram rasgões enormes! Autênticos buracos no tecto, que nessa noite nos deram acesso a uma imagem completa do céu!
Eu e Marta curtimos o céu sem nos apercebermos do que tinha acontecido à tenda! Senti-me enganada na minha própria estupidez e distracção. O Manel deve ter ficado pasmado com o nosso alheamento! Como eu o compreendi!
Como foi possível que um pedaço de céu deslumbrante nos distraísse de uma realidade que estava mesmo em frente aos nossos olhos?!
Esta noite marcou-me para sempre, marcou-nos aos três. Aprendemos, porque todos erramos nessa noite; o Manel só viu a tenda destruída e por isso não apreciou o céu, eu e a Marta só reparamos no céu, mas foi tão cegamente que nem nos apercebemos do estado da tenda!
Nessa mesma noite, dormimos ao relento. Os três juntos, cada um a pensar sabe-se lá em quê.
Foi o último verão que passamos juntos. Foi o último momento em que aprendemos alguma coisa juntos. Foi "o" momento em que aprendemos, com uma coisa tão simples, a compreender a vida.
Aprendemos que se devemos viver os sonhos, não esquecendo que existe a realidade...
Hoje, o Manel é um homem demasiado céptico, a Marta é uma sonhadora problemática… eu, não sei o que sou.
(qualquer semelhança com a realidade é coincidência... apenas alguns pormenores são reais, tudo o resto foi sonho)
AS
1 comentário:
tu minha amiga...és uma mulher incrivel, com um feitio unico, e com um coração de manteiga!
P.S. se ja nos conhecessemos nesta altura eu mostrava-te as mil e uma coisas que se podem fazer no meu Poto Covo :)
Bjinhos
Susana
Enviar um comentário